Influências de Santo Agostinho
Na análise das influências de Santo Agostinho não podemos deixar de esquecer o aviso de E. Gilson de que “o cristianismo é antes de tudo uma religião e se as vezes emprega termos filosóficos para exprimir sua fé, substituem o sentido filosófico antigo desses termos por um sentido religioso novo e é esse sentido que lhes devemos atribuir, quando os encontramos nos livros cristãos.“
Tenhamos isto em mente ao analisarmos as influências de outros escritores que podemos detectar na obra de Agostinho.
Uma questão decisiva que se coloca quando tentamos analisar a influência exercida sobre a obra de Agostinho pelos mestres da Antiguidade é a mesma questão que se coloca em relação a influência da filosofia grega pagã sobre toda a religião cristã. Esta questão se colocou já a partir do primeiro contato da religião cristã com a filosofia pagã greco-romana e do fato não desprezível de que os escritores da chamada patrística grega e latina tiveram sua formação cultural inicial baseada nesta filosofia pagã, como não podia deixar de ser para os homens bem educados da época. A posição dos escritores cristãos ia desde uma completa condenação da influência deste pensamento filosófico, posição esta sustentada por Taciano; até a aceitação daquelas partes que eram boas e conforme o espírito cristão, a posição de Justino.
Diante desta polêmica, Agostinho tomou a mesma posição de Justino. Assim podemos perceber em sua obra uma forte influência da filosofia grega, mais marcadamente o neoplatonismo de Plotino. Por outro lado uma grande influência em sua obra ocorreu pelo contato com a filosofia maniqueísta. Agostinho foi inicialmente seduzido por esta filosofia mas depois passou a combatê-la com todas as forças. As posições tomadas por Agostinho em questões teológicas fundamentais, sendo que algumas viriam a formar a base teológica da religião cristã que hoje conhecemos, muitas vezes parecem ter sido tomadas justamente para se contrapor a visão maniqueísta.
A Teologia de Santo Agostinho
Os critérios da verdade
Um problema filosófico que Agostinho analisou foi o da busca dos fundamentos da conhecimento. A corrente do ceticismo sustentava que não era possível encontrar um critério de evidência absoluta e indiscutível , o conhecimento limitando-se ao meramente verossímil, provável ou persuasivo. Como sustentar que a verdade religiosa era sólida e firme diante desta posição?
Agostinho redigiu o diálogo "Contra os Acadêmicos" para reabilitar os sentidos como fonte da verdade. O erro segundo ele provém dos juízos que se fazem sobre as sensações e não delas próprias. A sensação enquanto tal jamais é falsa. Falso é querer ver nela uma expressão de uma verdade externa ao próprio sujeito.
A partir desta posição Agostinho poderia trabalhar com o seu raciocínio para atingir outras verdades.
A origem do mal e a substância de Deus
Uma das questões teológicas abordadas por Agostinho é a da origem do mal e a da substância (matéria) de Deus. De início Agostinho não concebia a existência de alguma coisa que não fosse material. Desta forma deveria existir uma certa substância do mal da qual seria formada o espírito maligno de que falavam os maniqueístas. Como Deus não poderia ter criado uma substância de natureza má, deveriam existir duas substâncias opostas a si mesma, ambas infinitas, a do mal e a do bem.
Esta ideia trazia uma série de problemas para Agostinho, já que ela levava a alguns caminhos sem saída. Se esta raça das trevas existisse assim como esta substância do mal, o que poderiam elas fazerem contra Deus. Se mesmo parte da substância de Deus, por menor que fosse, pudesse ser corrompida por esta substância do mal, então Deus não seria onipotente e incorruptível. Como a nossa alma certamente provinha de Deus, se ela fosse corrompível, Deus não seria onipotente, e se ela não fosse que sentido faria a existência do mal?
Se tudo que Deus cria é incorruptível, então ele não criou esta substância do mal. Então qual é a origem do mal? Como pode existir algo que Deus não criou? Deus não é onipotente?
“Sendo Deus o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que Ele. De onde, pois, vem o mal? Ou seria pelo fato de Deus fazer tudo isso com matéria em que existia algo de mau, e ao dar-lhe a forma e ao orderná-la, ter deixado nela alguma coisa que não transformasse em bem? E isto por quê? Não podia Ele convertê-la inteiramente de modo a não permanecer nela nada de mau, já que era Onipotente? Poderia acaso ela existir contra a vontade divina? Se subitamente quis fazer alguma coisa, por que a não reduziu ao nada, sendo Onipotente, e não ficou só Ele, todo verdadeiro Bem, todo sumo Bem, todo Bem infinito? Não seria pois todo-poderoso, se nada de bom pudesse criar sem a ajuda daquela matéria a que Ele mesmo não tinha dado existência.”
Na busca da solução desta questão, Agostinho se distancia do maniqueísmo e chega a conclusão de que não existe uma substância do mal:
“Em absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para as vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhe estabelecestes. Mas porque em algumas das duas partes, certos elementos não se harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isto são bons (no conjunto) e bons em si mesmos. Todos estes elementos que não concordam mutuamente concordam na parte inferior da criação a que chamamos terra.
Longe de mim o pensamento de dizer: ‘Estas coisas não deveriam existir’. Embora, ao considerá-las só a elas, eu desejasse que fossem melhores (…)
Já não desejava coisas melhores, porque, abarcando tudo com o pensamento, via que os elementos superiores são incontestavelmente mais perfeitos que os inferiores. Mas um juízo mais sensato fazia-me compreender que a criação em conjunto valia mais que os elementos superiores tomados isoladamente.”
Assim Agostinho pode finalmente responder onde reside o mal, que nada mais é que o desvio do caminho do bem, que é possível para o homem pois Deus lhe deu livre arbítrio. E o livre arbítrio é necessário pois o homem não seria verdadeiramente bom se não escolhesse o bem sem a ele ser obrigado por sua natureza:
“Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescência”
Alma e Corpo
Agostinho seguia a teoria de Platão que define o homem como sendo uma alma que se serve de um corpo. Com isto acreditava nas conseqüências que seguem desta idéia, como a noção de que a alma tem uma transcedência hierárquica em relação ao corpo. Como algo inferior (o corpo) não poderia agir sobre algo superior (a alma), a alma por livre vontade perceberia as mudanças pelo qual o corpo passa e se adaptaria a elas. Assim um objeto visto pelo corpo ganha uma representação feita pela alma com sua própria substância. A alma assim não sofre a ação do corpo, mas age para reproduzi-la.
O Homem, o pecado e a necessidade da graça
Para que possamos combater o pecado é preciso entender a atração que ele exerce. Ninguém ama o pecado pelo pecado, mas sim pelo prazer que sua prática nos causa. E para medirmos a gravidade do pecado, devemos procurar a razão pela qual o cometemos: a gravidade do pecado esta na intenção de quem o comete, e não no pecado em si. Assim o mesmo pecado de roubar pode ser menor em um ladrão que rouba para se sustentar do que para quem rouba um fruto em grupo com amigos pelo simples prazer de se mostrar aos outros (o prazer da cumplicidade).
O pecado é uma transgressão da lei divina, na medida em que a alma foi criada por Deus para reger o corpo, e o homem, fazendo mau uso do livre arbítrio, inverte esta relação, subordinando a alma ao corpo e caindo na concupiscência e na ignorância. A alma acaba por confundir-se ao corpo. A alma presa ao corpo não pode se salvar por conta própria. A queda do homem é responsabilidade do livre-arbítrio, mas ele por si só não é suficiente para fazer a alma retornar às suas origens divinas. A salvação não é apenas questão de querer, mas de poder. E esse poder é privilégio de Deus. A graça é necessária para que o homem possa se redimir e se dirigir para o bem. Somente os eleitos que recebem a graça é que podem ser salvos. E a graça nada mais é que a fé em Deus.
A Cidade de Deus
Agostinho teve uma enorme participação na formação de uma teologia cristã coerente. Mas sua obra que mais efeitos causou, ainda que não tenha sido exatamente esta a sua intenção, foi a "De Civita Dei" (413-426). Nela Agostinho nos trás uma teoria que mostra a história como o resultado do pecado original de Adão e Eva, que se transferiu a todos os homens. Aqueles que nele persistem constroem as cidade humana (civitas terrena) onde são permanentemente castigados. Os eleitos pela graça divina edificam a Cidade de Deus (civitas Dei) e vivem em bem aventurança eterna. A construção progressiva da Cidade de Deus seria, pois, a grande obra começada depois da criação e incessantemente continuada. Ela daria sentido a história e todos os fatos ocorridos trariam a marca da providência divina. Caim, o dilúvio, a servidão dos hebreus aos egípcios são expressões da cidade terrena. Ao contrário, Abel, o episódio da Arca de Noé, Abraão, Moisés, a época dos profetas e, sobretudo, a vinda de Jesus, são manifestações da Cidade de Deus.
Assim temos duas cidades convivendo ao longo do tempo, uma de origem terrena e outra de origem sobrenatural, da qual participariam todos os cristãos, sendo esta uma segunda cidade dentro das outra. Os cristãos deveriam viver em função da sua cidade por amor a Deus. As duas cidades podiam conviver já que também os pagão possuem um código de vida em sociedade e vivem em função de seu amor pelo seu país. Mas somente os cristão seriam membros da verdadeira cidade, cujo “rei é a Verdade e a medida a Eternidade”.
A grande conseqüência desta teoria da história surge com a idéia de que a Igreja, como guardiã desta cidade, deve usar da força que lhe foi concedida pelos fiéis para manter a unidade da cidade e garantir a sua segurança. Deste modo Agostinho estava dando a base ideológica para legitimar a atuação da Igreja na defesa dos interesses dos cristãos. Embora Agostinho não considerasse que o objetivo dos cristãos fosse atingir a felicidade no mundo terreno, suas idéias serviram de base para que a Igreja se considerasse no direito de intervir no mundo terreno para garantir o que ela considerava ser esta felicidade, a partir do momento que a Igreja se confundiu com a chamada Cidade de Deus e se tornou sua representante.
A principal característica da Idade Média será essa influência exercida pela Igreja. No século XII o processo de confusão entre a Cidade de Deus e a Igreja atinge o seu auge, a ponto de um filósofo cristão da época, analisando as idéias de Agostinho sobre a Cidade de Deus, afirmar que a história do Império “não é [mais] a de duas Cidades, mas, antes, se assim podemos dizer, a de uma só, misturada sem dúvida, que é a a Igreja”. Assim a partir de um certo ponto a história do Estado passa a se confundir com a história da Igreja, pois estes dois organismos caminham para uma comunhão. A questão que se coloca é a convivência do poder espiritual e do poder temporal. Há o poder secular para os leigos e o poder espiritual para os clérigos, sendo que cada uma destas ordem tem um único chefe, o rei para os leigos e o papa para os clérigos. Mas o poder espiritual é superior ao secular e assim o papa é que legitima o poder do rei e pode excomungá-lo, retirando esta legitimidade, se necessário for.
Antes ainda de Agostinho, uma justificativa para esta teocracia é já encontrada no Antigo Testamento dos judeus, já que no início Israel era uma teocracia em que o poder foi concedido aos reis com a condição de que os mandamentos de Deus fossem seguidos. O papa só se reserva ao governo das almas pois o governo dos corpos é indigno dele. Como dito o rei deve governar segundo os preceitos de Deus. E como o rei é incapaz de julgar convenientemente quais são os princípios de Deus, deve utilizar-se dos sacerdotes para lhe fornecer a correta interpretação.
Santo Agostinho e a Idade Média
Ao analisarmos a influência do material da Antigüidade sobre a Idade Média temos que passar necessariamente por Santo Agostinho. Agostinho pode ser visto como uma ponte entre estas duas épocas, tendo vivido neste período de transição, sendo a sua própria vida marcada pela mesma transição filosófica e religiosa que vemos ocorrer na passagem da Antigüidade para a Idade Média, transição esta que é a superação da filosofia e religião greco-romana pelo cristianismo.
Sua obra "De Civitate Dei" (413-426) é uma reação a queda do Império Romano que se anunciava e aponta um caminho que iria ter uma grande influência para a nova estrutura política que se formaria na Idade Média, a saber a disputa pela Igreja do poder temporal.
Podemos assim dizer que Agostinho além de testemunhar a transição para a Idade Média, forneceu os alicerces para esta transformação, tanto no campo religioso como no da futura estrutura política.
Bibliografia
GILSON,
Etienne. A Filosofia na Idade Média,
Martins Fontes, São Paulo, 1998.
SANTO AGOSTINHO. Coleção ‘Os Pensadores’, Nova
Cultural, São Paulo
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